Socialização, ambientação e habituação

  


Socializar seu cão tem uma importância fundamental,  além de proporcionar o bem-estar físico e emocional através do reforço social nas relações intraespecíficas e interespecíficas a socialização promoverá enriquecimento cognitivo, recreação, desenvolvimento de aptidões físicas, gasto energético nas interações harmônicas e habilidades sociais que podem resultar em  prevenções de doenças relacionados ao estresse na exposição de ambientes e indivíduos desconhecidos. Ter um cão que frequenta vários ambientes diversificados sem demonstrar medo ou insegurança, que não estranha e evita pessoas e animais desconhecidos no passeio é o sonho de qualquer tutor, mas em sua grande maioria os tutores desconhecem que todos esses bons comportamentos estão inteiramente ligados a socialização, ambientação e habituação dos cães de forma correta e neste artigo vamos abordar cada um desses processos frisando mais detalhadamente o processo de socialização, tão banalizado no nosso meio e por algumas vezes até confundido com outros processos de treinamento.

Inicialmente, é importante ressaltar que comportamentos são resultados de processos ontogenêticos, filogenêticos e o contexto sociocultural (Cole, M. 2002), portando, reduzir problemas de comportamento social a falta de socialização é uma afirmação superficial. A importância da socialização é crucial desde que o cão não tenha heranças de temperamentos coléricos como características filogenéticas, pois a tentativa de socializar esses cães sem um gerenciamento apropriado pode reforçar um problema de agressividade social.  Certificados dessa evidencia podemos nos aprofundar nos períodos em que a socialização ocorre e qual a maneira adequada de introduzir os cães nesse universo socioamebiental.

Entende-se que os comportamentos sociais caninos tem origem desde o nascimento, se tornando intricados a medida que o cão envelhece. O aprendizado social passa por estágios de relações ecológicas harmônicas e desarmônicas onde por vezes os cães e seres de outras espécies cooperam entre si e outras vezes disputam entre si os variados recursos necessários para a sobrevivência. Comportamentos como expressões vocais e comunicação corporal, interpretação de expressões verbais, faciais e corporais, sinais de advertência,  desenvolvimento de relações intraespecíficas e interespecíficas, maturação comportamental e interação em grupo são características comportamentais de relações ecológicas no processo de sociaização da família multiespécie. Esses primeiros eventos sociais vivenciados pelos cães podem exercer uma influência poderosa tanto no padrão de arquitetura do cérebro como no desenvolvimento de repertório comportamental. Serão estas experiências com relação ao ambiente e as interações sociais que afetará fortemente seu desenvolvimento futuro. O cérebro do cãozinho filhote é moldado a cada experiência, este conceito refere-se à plasticidade cerebral, sendo o organismo exposto passivamente a cada situação, independente delas serem boas ou ruins, a plasticidade cerebral é o elemento subsequente, cortando para os dois lados e trazendo ambas consequências futuras das experiências vivenciadas na janelas de socialização. A sensibilidade do cérebro vai mudando a cada experiência amadurecendo seus aspectos cognitivos e desenvolvendo o sistema nervoso central. Cada comportamento emitido é suscetível as influências socioambientais para desenvolver-se naturalmente. Dentro deste período de aprendizagem, formam-se grandes quantidades de sinapses (conexões nervosas) no cérebro em evolução e mediante as experiências de contato com estímulos, essas sinapses sofrem refinamento, diminuindo em números e se tornando mais especializadas aos estímulos recebidos. Esses refinamentos nos circuitos neurais são os elementos que medeiam os comportamentos hormonais e emocionais impulsionados pelos estímulos contido dentro de cada cenário da experiência vivida. Todo esse processo neurofisiológico de adaptação socioambiental deve acontecer de forma  positiva , benéfica e precocemente dentro dos períodos críticos que são divididos em 4 janelas. São eles:


        Período Neonatal-

       Abrange as duas primeiras semanas de vida. Restrito aos padrões infantis seu organismo é insuficiente e com capacidades sensoriais bem limitadas. Os olhos e ouvidos fechados e sem reação (embora alguns reajam a luz muito forte) com olfato, tato e paladar poucos desenvolvidos, conseguindo usar o faro para detectar a progenitora rastejando até seu encontro, mostrando também sensibilidade aos toques maternos e degustação do paladar no interesse pelo colostro, leite materno rico em anticorpos. Os filhotes neste estágio dormem bastante, algo de 90% do seu tempo diário se contorcendo parte do sono, tendo o restante de seu tempo gasto com a alimentação. O comportamento de excreção é reflexo, estimulado pela língua materna. Exibe reação a dor e ao frio incapaz de controlar sua temperatura. Nesse período o filhote não terá exposição a indivíduos e ambientes diversificados exceto o criador, sua progenitora e seus irmãos de ninhada.

        Período de transição – 

       É um período de curto tempo que decorre aproximadamente da segunda até a terceira semana, começando quando os ouvidos e olhos abrem e durante os quais as habilidades locomotoras mudam do rastejamento para a marcha e terminam quando aparecem as primeiras reações de medo. Neste periodo os comportamentos neonatos diminuem ou desaparecem, começando a aparecer os padrões característicos adulto como abanar de rabo. Surgem alguns desenvolvimentos motores suficientes para sairem da caixa ninho com alguns comportamentos exploratórios. Começa-se a aparecer os primeiros dentinhos alterando comportamentos ingestivos para alimentos semi-sólidos. Nesse período alguns canis de criadores passam a se alterar de forma aleatória no trabalho de manejo básicos com os filhotes com a finalidade de introduzir pessoas diferentes para que a ninhada já comece a desenvolver habilidades sociais com humanos.

        Janela da SOCIALIZAÇÃO – 

      É o período crítico que mais enfatizaremos acima dos restantes, por ser o ponto crucial do texto e provavelmente um dos períodos mais importante na vida do cão relativo as interações sociais. O período começa com 3 semanas de idade quando o cãozinho torna-se capaz de procurar interação social não materna, exibindo um rápido desenvolvimento dos padrões comportamentais em contraste aos períodos anteriores, onde ocorre alterações motoras e sensoriais e durará até os padrões comportamentais infantis terminarem e as interações ambientais se tornarem mais atraentes que as sociais, com cerca de 12 semanas. Nesse período a mãe começa a deixar os cães sozinhos por períodos de tempo cada vez maiores regugitando a comida preparando os cães para o desmame (alguns casos esse processo se inicia na fase de transição), isso tudo porque entre a 4 e a 5 semana a mãe começa a produzir menos leite e com o desenvolvimento dos dentes afiados dos filhotes a amamentação começa a se tornar algo dolorido e inicia a relutância da mãe em alimentar os filhotes pelo leite materno.  O processo de desmame natual possibilita ao filhote os primeiros aprendizados sociais, devido ao distanciamento da mãe saindo do ninho, os filhotes a princípio choram, mas com tempo percebem que não resolvem. Como o processo é gradativo alguns filhotes desistem após tentativas frustradas, já outros, insistem por mais tempo na amamentação até que a mãe por auto preservação tenha uma conduta repreensiva inibindo o filhote a amamentação.  Posteriormente os cãezinhos começam a explorar o ambiente investigando  pessoas que lidam diretamente com a ninhada e objetos inanimados,  ocasionando o desenvolvimento cognitivo aproximando o sistema nervoso dos padrões de um cão adulto tornando o filhote mais seguro e independente.  Simultaneamente, as habilidades motoras amadurecem para permitir reações ativas e reativas entre os irmãos de ninhada, verificando-se o comportamento alelomimético, isto é, os filhotes começam a se comportar como um grupo de forma sincronizada, tendo origem no aprendizado por imitação, por exmplo uma luta lúdica entre os integrantes de um grupo de cães ou a detectação de um perigo por um integrante de uma ninhada ocasionando a fuga de todo um grupo sem realmente saberem qual o real motivo da fuga, todos eles apoiados no comportamento de imitação. O filhote consegue fazer associações rápidas entre estímulos, igual ao adulto, o que lhes permite muito aprender sobre exterior, mas não é capaz de aprender padrões motores complexos, dado que suas respostas motoras não estão completamente desenvolvidas.
Existem evidências de que eventos durante o período de socialização podem ser críticos para outros efeitos, tais como fixação em locais particulares, formação de hábitos alimentares básicos e reação ao isolamento.
Várias pesquisas voltada para o processo de socialização canina sustentam essas afirmações como por exemplo o estudos feito pelos cientistas Daniel G. Freedman, John A. King ,Orville Elliot publicada pela revista Science ainda em 1961, eles descobriram muito a cerca da importância dos filhotes estarem com outros cães, pessoas e animais. Por meio da criação de isolamento solitário, isolamento pareado, enre gatos e pessoas e depois fazendo testes em vários intervalos eles descobriram que:
De 3 a 5 semanas de idade os cães abordarão ativamente pessoas estranhas. imediatamente depois disso, começam a evitar estranhos e isso aumenta lentamente até atingir o pico de 12 a 14 semanas. O ato de evitar é considerado instintivo para proteger o filhote de predadores, mas pode trazer sérias consequências nas relações com humanos.
Embora existam diferenças raciais nas respostas, por razões filogenêticas, os cãezinhos que ficaram completamente isolados de seres humanos até 14 semanas de idade ficam sempre desconfortáveis entre as pessoas agindo como lobo silvestre evitando interações e agindo medrosamente se a fuga não for possível. Se for criado somente entre seres humanos e gatos por 14 semanas  (sem nenhum outro cão) o cão tenderá a evitar a sua própria espécie, tanto social quanto sexualmente.  Cãezinhos isolados em gaiolas de 8 semanas até 6 meses de idade, ou mantido em canis por mais de 14 semanas exibiram um medo generalizado de ambientes diferentes e os filhotes mantidos em ambientes relativamente brandos exibiram aberrações comportamentais em ambientes mais complexos o que caracteriza como ausência de ambientação, ou seja, a exposição do indivíduos nos variados contextos ambientais.
Pesquisas mais recentes com técnicas mais inovadoras não mostraram um resultado muito diferente. Professores do departamento de medicina veterinária da universidade de Guelph no Canadá  realizaram um estudo em 2017. Os pesquisadores Dr Jason Coe, Dra Lee Niel e a Dra Janet Higginson Cutler promoveram um projeto de estudo transversal colhendo dados de 296 propietários de filhotes da América do Norte no momento da inscrição (para coletar dados sobre as características demográficas e características do filhote) e novamente quando os filhotes completaram 20 semanas de idade (para coletar informações sobre procedimentos e quantidade  de apresentação do filhote a pessoas, ambientes e animais (para coletar dados sobre as características demográficas e características do filhote) e novamente quando os filhotes tinham 20 semanas de idade (para coletar informações sobre as práticas de socialização e respostas do proprietário ao mau comportamento e sinais de medo no filhote).  Os resultados mostraram que quase um terço dos filhotes no estudo recebeu apenas uma exposição mínima a pessoas e cães fora de casa. Os pesquisadores definiram "exposição mínima" como interações com até 5 cães e 10 pessoas em um período de duas semanas. Isso pode parecer um calendário social completo, mas não está nem perto do que um filhote precisa para uma socialização adequada. Em seu livro, “ Antes e depois de pegar seu filhote ”, o Dr. Ian Dunbar recomenda que seu filhote encontre pelo menos 100 pessoas diferentes em seu primeiro mês em casa. Isso deve incluir indivíduos de diferentes alturas, idades e origens étnicas, além de pessoas com óculos, bengalas, chapéus, guarda-chuvas, cadeiras de rodas, etc. A partir das perguntas da pesquisa relacionada ao comportamento do dono, os cientistas descobriram que os proprietários que usavam punição tinham maior probabilidade de relatar que seu filhote estava com medo. 4% também relataram que forçariam o filhote a enfrentar seus medos, uma tática conhecida por realmente aumentar o medo, reiterando que, se a exposição do filhote form associada a estimulações aversivas aumentará a probabilidade de se ter um cão anti-social futuramente. 

     AMBIENTAÇÃO

      Os processo de ambientação não está ligado a exposição de caráter social mas sim a exposição de ambientes diversificados e complexos. Ambientar é expor um cão de forma gradativa a múltiplos ambientes que o cão será inserido futuramente de forma positiva.
O cão doméstico não tem a mesma capacidade de locomoção como um animal selvagem de selecionar o ambiente mais propício em um ambiente confortável e adequado e por essa razão temos que adaptar o cão aos padrões do cotidiano domestico.
Inserir o cão de forma precoce em ambientes urbanos com a maior variedade de estímulos auditivos, visuais e olfativos moldará o processo de plasticidade cerebral tronando o indivíduo cão cada vez mais adaptado ao contexto domestico e urbano.
Uma experiência relatada por várias pessoas está relacionada a dificuldade de cães que vivem em fazendas serem expostas repentinamente a um passeio em uma avenida movimentada, ao passo de que o oposto (um cão habituado no contexto urbano em contato com um ambiente ecológico) não tem os mesmos resultados devido a intensidade dos estímulos que não é encontrado em fazendas.
Outro fator ambiental muito importante para os cães porém pouco mencionado é o fator térmico.
Estimulações térmicas como temperatura do ar, umidade, ar em movimento, radiação solar são relevantes para as experiências em que o cão está sendo inserido e mais importantes pois todos esses fatores estão gerando aprendizado para comportamentos futuros.
Estruturas químicas e bilológicas estão presentes em todos os ambientes e em sua maioria são invisíveis a olho nu para nos humanos mas perceptíveis pelo olfato do cão traduzindo em comportamentos moldados pelo processo de ambientação

     HABITUAÇÃO -

Etimologicamente a própria palavra descreve o seu significado de Habituar, criar hábito, ou de acostumar. 
Este termo é comumente usado na psicologia como formas de aprendizagem e especificamente em behaviorismo ela se refere ao desvanecimento de uma resposta a uma estimulação monótona ou seja é um comportamento simples que um indivíduo para de responder a uma estimulação repetida de baixa intensidade. No caso dos cães o processo de habituação está associado a situações corriqueiras que será parte de manejos comuns durante toda sua vida como habituar o cão a manejos de banho e tosa, manejos de veterinários manejos de administração de medicamentos orais, intramusculares e venais, manejos de toques em patas, limpeza de ouvidos, toque e levantamento de caudas dentre outros inúmeros manejos que podem gerar estresse no cão se não houver uma habituação adequada.
Um experimento que respalda o processo de habituação é baseada no ensaio do famoso neurocientista estadunidense Éric Richard Kandel que foi realizado com caracóis através de toques suaves por repetidas vezes e foi observado que inicialmente ele reage, mas depois cerca de 10 ensaios ele se habitua ao toque e este comportamento está associado a uma diminuição na quantidade de neurotransmiossores segregados. 

Os cães podem ser socializados somente quando são filhotes? 

Fundamentados na afirmação que os filhotes precisam ser socializados precocemente, os cães adultos não podem ser socializados? Sim. Cães adultos podem ser socializados desde que o cão não tenha um fator genético que impossibilite ou tenha passado por alguma experiência traumática que dificulte a aprendizagem de interação social. Cães anti-sociais como nesses casos são trabalhados de forma diferente com intervenções de modificação comportamentais.

como integrar a socialização na fase de imunização do filhote? 

Você deve está se perguntando como ambientar seu cão na rua, socializar ele com outros cães e habituar ele com os estímulos sonoros e visuais do perímetro urbano se ele não pode ter contato com cães ja imunizados e nem pode passear devido às recomendações veterinárias do processo de imunização. 
A resposta é bem simples: No colo. 
Enquanto ele está no colo, vendo outro cão, ouvindo os ruídos dos automóveis e tendo contato olfativo com o ambiente você segura ele no seu colo dando petiscos a cada estímulo que ele processa fazendo um empareamento com um reforçador positivo.  É claro que tem alguns detalhes que talvez seja preciso ajustar como uma exposição gradual observando o limiar de sensibilidade do filhote mas são detalhes ajustáveis. 

Da teoria a prática, qual seria a forma correta de socializar um filhote?

Deixarei um link de um vídeo no YouTube para ilustrar como seria o processo prático de socialização, ambientação e habituação em uma avenida bem movimentada. Segue o link:

Puppy Class Training
Uma modalidade de aulas de filhotes em ambientes confinados e completamente imunizado o puppy class é uma poderosa forma de previnir problemas comportamentos futuros em cães. São introduzidos somente filhotes em fase de imunização sendo treinados conceitos de obediência básica, interação com outros cães e habituação a vários tipos de abordagens e manejos de saúde e estética. Ainda é uma modalidade recente no Brasil mas nós EUA é muito comum encontrar centro de treinamento especializado em filhotes como o puppy class.

A importância da socialização canina é reconhecida desde o início dos anos 1960 como já ressaltado, não é algo tão novo porém, desconhecido de grande parte de tutores.  Não ignore o poder de uma socialização adequada e seus benefícios na qualidade de vida do seu cão. Certifique-se que seu filhote tenha o maior número de experiências positivas 

Por: Pablo Silveira



Referências bibliográficas: 

Cole, M. (2002). Culture and development. In H. Keller, Y. H. Poortinga & A. Schölmerich (Orgs.), Between culture and biology: perspectives on ontogenetic developmen

Critical Period in the Social Development of Dogs: https://science.sciencemag.org/content/133/3457/1016


The Power of Proper Puppy Socialization and Training Classes, American Kennel Club; 
 

Puppy Owners Not Providing Proper Socialization 
Behavior problems, What Make a good puppy; DogStarDaily - Dr Ian Dunbar





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